A fragmentação do mundo comum e as tensões irresolúveis da intimidade
Logo nas primeiras linhas da Política, Aristóteles refere que a existência da polis tem em vista um bem (uma espécie de valor mais elevado) intrinsecamente ligado ao florescimento da comunidade e dos seus indivíduos. Essa comunidade, concebida como um organismo, potenciaria a “vida boa”. A transposição desta conceção para outros contextos históricos, nomeadamente para as cidades modernas e contemporâneas, levanta uma série de problemas, mas não deixa de constituir uma referência para repensar as consequências da fragmentação do mundo comum. Na primeira parte desta apresentação, analisarei alguns momentos-chave do tratado de Aristóteles e a compreensão de Hannah Arendt acerca do mundo comum. Quando Arendt escreve, em A Condição Humana, que “o mundo comum acaba quando é visto apenas sob um aspeto e só lhe é permitida uma perspetiva”, isto significa, entre outras coisas, que a esfera pública de interesse comum está intimamente ligada à apresentação da pluralidade. A incapacidade de ver e ouvir os outros, ou de ser visto e ouvido, são formas de destruir o mundo comum, destruição que surge de forma muito materializada nas cidades, onde o espaço da aparência, de carácter potencial, está sempre ameaçado pela própria partilha do espaço, por formas de exclusão e separação entre elementos incomensuráveis. Esta linha de reflexão será prolongada e confrontada com as noções de “espaço diferencial” (Henri Lefebvre) e “partilha do sensível” (Jacques Rancière), as quais, ressaltando o carácter contraditório e agonístico do espaço, permitem também alargar o espetro da relação entre o político e o estético.
Uma outra análise de Arendt, relativa à transformação progressiva do espaço privado em espaço de intimidade, será o mote para a segunda parte da apresentação. Examinarei algumas das consequências dessa transformação, as suas repercussões no espaço urbano (incluindo o doméstico) e em processos de subjetivação e autoabsorção. Isto relaciona-se, por outro lado, com alguns aspetos que Richard Sennett desenvolve em The Fall of Public Man. Relaciona-se, por outro lado, com o texto clássico de Simmel sobre as metrópoles, com a sua compreensão das condições objetivas e subjetivas, tantas vezes ambivalentes, que integram a vida: uma das contrapartidas da intensificação da vida nervosa é o carácter blasé; na mesma linha, o anonimato e a maior liberdade individual dos habitantes das grandes cidades implica também uma maior solidão. Estas tensões irresolúveis espelham as de outros pares de conceitos, tais como atenção e distração, estar vigilante e deixar-se ir.
Pretende-se com este percurso questionar o carácter político e estético do mundo comum e fornecer um acesso a algumas expressões artísticas contemporâneas que trabalham a intimidade e a autoabsorção. E responder a uma última questão: neste contexto, o que pode significar “estar presente”?
Bio
Nélio Conceição é investigador integrado do Instituto de Filosofia da NOVA, onde coordena o CultureLab. Doutorou-se em Filosofia (Estética) na NOVA FCSH (2013) com uma tese que trata da relação entre filosofia e fotografia. Os seus interesses de investigação incidem sobre a estética, a filosofia da arte e a filosofia contemporânea. Tem trabalhado sobre o pensamento de autores como Walter Benjamin e Siegfried Kracauer, e sobre questões ligadas aos valores estéticos, ao conceito de jogo, à filosofia da fotografia, à filosofia do cinema e à filosofia da cidade, em particular na sua dimensão estética, social e política. Foi investigador visitante da PUC – São Paulo e do ZfL – Berlim. Publicou artigos em revistas como a Eidos, Kriterion, Journal of Aesthetics and Phenomenology e Aisthesis, e coeditou os volumes Aesthetics and Values: Contemporary Perspectives (Mimesis International, 2021), Conceptual Figures of Fragmentation and Reconfiguration (IFILNOVA, 2021) e Planos de pormenor: leituras críticas sobre a experiência da cidade (Húmus, 2023). Entre 2018 e 2022, co-coordenou o projeto de investigação “Fragmentação e reconfiguração: a experiência da cidade entre arte e filosofia”, financiado pela FCT.
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