Susana Nascimento Duarte e Maria Filomena Molder
A psicogeografia e a deriva são descritas, no texto de Guy de Debord, Théorie de la Dérive, como técnicas para explorar e estender as qualidades imaginativas e experienciais das paisagens urbanas, por sua vez, integradas numa prática mais alargada de construção de situações, cara aos situacionistas, com o propósito de atingir a transformação revolucionária da vida quotidiana. Estas experiências psicogeográficas de dérive enquadravam-se, à época, na ideia de uma unidade virtual da cidade feita de fragmentos dispersos, configurando uma teoria do urbanismo unitário que pressupunha a possibilidade de pôr em comunicação diferentes partes da cidade. Depois dos anos sessenta, segundo alguns na sequência da ideologização do urbanismo, a teoria do urbanismo unitário entrou em decadência e com ela também as experiências de dérive na sua associação ao situacionismo. Tendo como ponto de partida este quadro de referências, pretende-se neste texto abordar o atual contexto revivalista da ideia situacionista de psicogeografia e de dérive, em que estas experiências deixaram de estar associadas a um movimento de transformação da vida, através da transformação da relação ao espaço, nomeadamente urbano, e passarem a ser ou um fim em si ou, na melhor das hipóteses, procedimentos constrangidos de criatividade urbana. Por outro lado, tendo sido abandonada qualquer expectativa de transformação utópica, revolucionária ou mesmo progressista da experiência quotidiana, o que resta destas teorias e práticas urbanistas, e dos seus esforços de subversão das formas de vida, é eventualmente a dimensão de crítica da vida contemporânea no modo como se exprime e traduz por relação ao espaço urbano, aos lugares da cidade. O cinema servir-nos-á de ferramenta privilegiada para evidenciar alguns dos contornos e manifestações que uma tal crítica pode tomar hoje.
Na terceira parte do vol. 1 de L’invention du quotidien, Michael de Certeau procura incessantemente clarificar as diferenças entre cartografar e viajar, um mapa e um caminho, olhar e andar. Quer dizer, ao mesmo tempo que se detém no acto concreto de habitar uma cidade – no qual o quotidiano se faz –, de Certeau intervém a partir das suas observações no debate sobre as condições de possibilidade e os limites do conhecimento teórico.
Considerar a cidade como um texto que se escreve sem se poder ler equivale à descoberta agostiniana de sabermos o que é o tempo se ninguém nos perguntar o que é, pois agimos nele e respondemos por ele, e à exigência wittgensteiniana de fazer jus a uma pintura onde as tintas escorreram umas sobre as outras: qualquer descrição que tente corrigir essa mistura estará a apagar, esquecer ou desprezar a sua realidade própria. Não é sem razão que as primeiras páginas deste volume de L’invention du quotidien são dedicadas ao pensamento de Wittggenstein.
Que espécie de discurso é este que Michel de Certeau inventa para ousar fazer a apologia da cegueira e da opacidade contra a vidência e a transparência, alimentos da voracidade do ponto de vista teórico e da sua redução exaltante?