Luz e Sombra
O ciclo de cinema Luz e Sombra – Representações da Idade Média no Cinema, que decorre de 2 a 30 dezembro na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, nasce de uma parceria entre a Cinemateca Portuguesa e o grupo de investigação interuniversitário “Using the Past. The Middle Ages in the Spotlight”, coordenado pela Prof. Alicia Miguélez (IEM, NOVA FCSH) e no qual participam ativa ou pontualmente investigadores/as de universidades nacionais e internacionais, como é o caso dos investigadores do CineLab/IFILNOVA João Mário Grilo, Maria Irene Aparício e Susana Viegas.
Programa completo aqui.
Apresentação
A presença da Idade Média no nosso imaginário tem no cinema uma das suas maiores expressões. Esta relação remonta, aliás, ao alvorecer da criação da chamada sétima arte. Em 1900, Georges Méliès produziu, em França, o filme Jeanne d’Arc, focado na figura da mártir francesa medieval Joana d’Arc. A primeira longa-metragem estreada em Itália, de 1911, intitulada Inferno, foi igualmente uma adaptação da primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri. Do mesmo modo, ao longo dos séculos XX e XXI, a produção de filmes inspirados no período medieval tem sido uma constante. Este imenso repertório constitui, em si mesmo, um objeto cultural de incontestável valor e um extraordinário espelho do nosso tempo, da nossa própria época. Além de antiga, esta temática é transversal aos diversos géneros cinematográficos (comédia, crime, drama, épico-histórico, ação, aventura, fantasia, animação), a várias indústrias cinematográficas e a realizadores com interesses muito diversos, que, numa ou em várias alturas das suas carreiras, se têm debruçado sobre a Idade Média. O cinema revela-se assim como um campo de criação artística incontornável para conhecer os usos e visões do passado medieval nos séculos XX e XXI.
A iniciativa: filmes e atividades
A retrospetiva inclui a apresentação nas salas da Cinemateca Portuguesa de um total de vinte e três longas-metragens (incluindo três longas-metragens para público infantil e juvenil, estas últimas exibidas na Cinemateca Júnior). Uma delas, o filme The Secret of Kells (2009), terá também uma atividade associada, a decorrer no dia 17 de dezembro, nas instalações da Cinemateca Júnior: uma oficina para crianças organizada por especialistas em manuscritos medievais do Departamento de Conservação e Restauro e do LAQV / REQUIMTE – Laboratório Associado para a Química Verde (NOVA FCT). Nesta oficina recriar-se-á um scriptorium medieval e os participantes poderão reproduzir algumas das letras iniciais mais belas que podemos encontrar nos manuscritos medievais portugueses, bem como experimentar a caligrafia dos escribas. O ciclo completa-se ainda com uma sessão especial de curtas-metragens da cinematografia portuguesa, que irá decorrer no dia 20 de dezembro, na presença de dois dos realizadores de filmes a exibir (João Pedro Rodrigues e Rita Azevedo Gomes). Com esta sessão, e ainda a exibição da longa-metragem Silvestre (João César Monteiro, 1981), pretende-se oferecer uma pequena mostra da riqueza, em termos estéticos e temáticos, da criação cinematográfica lusa, muito pouco explorada do ponto de vista do cine-medievalismo.
Escolha dos filmes
Esta retrospetiva foi desenhada de acordo com três critérios que não apenas o dos “grandes clássicos” do cinema sobre a Idade Média. O primeiro foi evidentemente o da relevância simultaneamente estética e temática dos filmes escolhidos. Assim, o ciclo inclui obras de alguns dos grandes realizadores da história do cinema, como Fritz Lang, Carl Theodor Dreyer ou Youssef Chahine. Em segundo lugar, procurou-se uma abordagem que fugisse da visão eurocêntrica e permitisse analisar até que ponto o período histórico que, noutras regiões globais, corresponde à Idade Média europeia, tem sido alvo de análise e exploração pela criação cinematográfica. Assim, as longas -metragens selecionadas são provenientes de vinte países diferentes, numa escala que engloba a Europa, a Ásia, a África e a América. Será possível, ao longo do ciclo, mergulhar nas narrativas fílmicas que se debruçam sobre a história da Mesoamérica antes da colonização espanhola (Retorno a Aztlán, Juan Mora Catlett, 1990), a história do Império do Mali (Yeelen, Souleymane Cissé, 1989), a dinastia Tang no século IX (Shi mian mai fu, Zhang Yimou, 2004) ou a Kyoto do século XII (Jigokumon, Teinosuke Kinugasa, 1953). Esta abordagem suscita várias reflexões. Por um lado, evidencia um claro interesse do cinema por períodos históricos que correspondem à Idade Média europeia em territórios como os atuais Japão, China ou Índia. De facto, a abundância de filmes e cineastas que se debruçam sobre a história da Ásia contrasta significativamente, por exemplo, com a inferior proporção de filmes existentes sobre os períodos prévios às colonizações de espanhóis e portugueses na América. Estes terão recebido muito menos atenção não só pelas diversas cinematografias da América do Sul como também por Hollywood ou pelo cinema europeu, tão ricos em filmes sobre o período da conquista e da colonização. Tal discrepância poderá ser um sinal da persistência de estereótipos sobre as culturas asiáticas e pré-colombianas, sendo as primeiras até muito recentemente vistas quase sempre como mais avançadas que as segundas pelas elites culturais europeias e norte-americanas. Por outro lado, esta abordagem permite ainda refletir sobre os problemas que supõe a análise de outras regiões globais, para além da Europa, sob o prisma dos conceitos e da periodização histórica convencional criada no seio da historiografia europeia. O cinema é, nesse sentido, muito elucidativo. Assim, alguns dos principais géneros cinematográficos que, em outros territórios, podemos identificar como equivalentes ao género de filmes históricos na Europa e América do Norte, podem ser transversais a vários períodos da história ocidental e, por outro lado, podem misturar o que seria o próprio género histórico com outros. É o caso dos filmes Wuxia, originários da China, onde convergem a fantasia, as artes marciais e um enquadramento histórico muito variável e que extravasa a Idade Média europeia. Esta particular abordagem cronológico-geográfica permite ainda refletir sobre o que é a própria Idade Média em contexto europeu, quais os seus limites em termos de baliza cronológica e enquadramento geográfico, bem como a sua pertinência. Assim, o ciclo inclui o filme Juana la Loca (Vicente Aranda, 2001), figura histórica que viveu entre os séculos XV e XVI, entre o final da Idade Média e o início da Moderna e, como tal, uma figura abordada e estudada por especialistas em ambos os períodos. Em termos geográficos, a retrospetiva oferece uma visão que ultrapassa o discurso fílmico sobre a Idade Média da Europa Central e Ocidental para explorar a Europa de Leste (Krzyzacy, Alexander Ford, 1960; Viimne Reliikvia, Grigori Kromanov, 1969; Mircea, Sergiu Nicolaescu, 1989) e o contexto nórdico (The Juniper Tree, Nietzchka Keene, 1990). O terceiro critério estabelecido na escolha dos filmes que fazem parte desta retrospetiva diz respeito ao próprio conteúdo das obras e, nesse sentido, os objetivos ao compor esta mostra foram de diversa índole. Em termos gerais e, de forma transversal, este ciclo debruça-se sobre a Idade Média enquanto período histórico e enquanto construção imaginária nas suas variadas interpretações mais idealistas/românticas (a “Luz” de que nos fala o título) ou negativas/grotescas (a “Sombra”). Por outro lado, pretende-se mostrar até que ponto o cinema mergulha no período medieval através de obras literárias, ensaios ou peças musicais produzidas não só na época medieval como também na moderna e contemporânea. O cinema evidencia-se assim como um meio de criação artística de referência para o estudo da receção da Idade Média em épocas posteriores.
Através da abordagem dos temas nos filmes selecionados, pretende-se ainda analisar a presença da Idade Média no cinema à luz de questões e desafios importantes para a sociedade contemporânea, entre as quais as de género, a religião ou a política. Neste sentido, é importante destacar como o cinema, enquanto meio de criação artística, mas também veículo de cultura popular, é filho do seu tempo. Como tal, a visão de um episódio ou de uma figura histórica medieval num filme das primeiras décadas do século XX nunca é a mesma que a de uma obra de inícios do século XXI, como também não a é a de um realizador e de uma realizadora, com olhares muito diversos. Neste sentido, a retrospetiva permite, por exemplo, refletir sobre as diferentes visões e olhares em torno do género feminino, tal como foram sendo apresentadas nas narrativas fílmicas de temática medieval produzidas ao longo do tempo. Poder-se-á, nesse aspeto, comparar as visões masculinas de Carl Theodor Dreyer sobre Jeanne d’Arc nos inícios do século XX e de Vicente Aranda sobre a figura de Juana la Loca nos inícios do século XXI. Numa baliza cronológica muito mais próxima, será interessante também perceber os olhares diferentes, sobre a mulher na Idade Média, do realizador português João César Monteiro (Silvestre, 1981) e da realizadora islandesa Nietzchka Keene (The Juniper Tree, 1990). De igual forma, a retrospetiva também pretende ser plural na escolha de filmes que abordam questões de índole religiosa. Assim, a visão de El Cid como herói guerreiro nas lutas contra o Islão na Península Ibérica do século XI (Anthony Mann, 1961) é mostrada junto de filmes produzidos no seio de cinematografias que abordam as relações entre o Islão e o cristianismo a partir de outros pontos de vista (Saladin, Yuossef Chahine, 1963). O ciclo inclui também obras que se debruçam sobre o próprio Islão sob diversas perspetivas (The Message, Moustapha Akkad, 1976; The Fateful Day, Shahram Assadi, 1995), que se enquadram num contexto de contraposição entre cristianismo e paganismo (Marketa Lazarová, František Vláčil, 1967) ou que mergulham no cristianismo ortodoxo do Império Bizantino (Doxobus, Fotos Lambrinos, 1997). A pluralidade de abordagens contempla ainda a visão cómica e satírica com o filme dos Monty Python sobre a procura do Graal (Monty Python and the Holy Grail, Terry Gilliam & Terry Jones, 1975). Devido aos critérios adotados na escolha dos filmes, mas também a outras circunstâncias, o ciclo não inclui algumas obras, tão ou mais relevantes do que as selecionadas, situadas na Idade Média europeia. Por exemplo, estão ausentes desta seleção obras importantes de realizadores como Pier Paolo Pasolini (a quem a Cinemateca dedicou uma retrospetiva alargada este ano), Ingmar Bergman, Andrei Tarkovski ou Sergei Eisenstein (estes três por questões de direitos). No entanto, no âmbito deste ciclo poder-se-ão ver vários filmes que passam pela primeira vez na Cinemateca Portuguesa ou ainda em Portugal, bem como outros, que não são exibidos na Cinemateca há muito tempo. É o caso do filme dos Monty Python, que poderá ser desfrutado em grande ecrã pela primeira vez em mais de dez anos. Além do mais, a retrospetiva inclui obras de duas realizadoras, Nietzchka Keene e Rita Azevedo Gomes, que poderíamos considerar quase raras, atendendo ao reduzido número de cineastas femininas que, ao longo das suas carreiras, se têm interessado pela Idade Média. Um número que será, em todo o caso, infinitamente inferior ao do conjunto dos realizadores masculinos que se debruçaram sobre aquele período histórico. E isto num campo artístico que, por si só, tem sido marcado por uma presença e atividade masculina avassaladora. Em suma, este ciclo é um convite a uma viagem a um universo onde o fantástico, o lendário e o histórico se entrelaçam. Para o deleite do amador de géneros históricos, assim como do grande público.
REFERÊNCIAS
Bartlett, Robert, The Middle Ages and the Movies. Eight Key Films, London: ReakƟon Books, 2022
Bildhauer, Bettina, Filming the Middle Ages, London: ReakƟon Books, 2011.
De la Bretèque, François Amy, L’Imaginaire médiéval dans le cinéma occidental, Paris: Honoré Champion, 2004.
Elliott, Andrew, Remaking the Middle Ages: The Methods of Cinema and History in Portraying the Medieval World, Jefferson (NC): McFarland & Company, Inc., 2010.
Alicia Miguélez (IEM, NOVA FCSH)
Ana Sirgado (IELT, NOVA FCSH)
Bárbara Carvalho (CESEM-NOVA FCSH)
Elsa Cardoso (CSIC, Madrid)
Elsa De Luca (CESEM, NOVA FCSH)
Erika Loic (Univ. Florida, USA)
Felipe Brandi (IHC, NOVA FCSH/IN2PAST)
Filipa Cruz (CESEM NOVA FCSH)
Golgona Anghel (IELT, NOVA FCSH)
Giulia Rossi Vairo (IEM, NOVA FCSH)
Javier Albarrán (Univ. Autónoma, Madrid)
João Mário Grilo (IFILNOVA, NOVA FCSH)
Joana Freitas (CESEM, NOVA FCSH)
José Pinto (INET, NOVA FCSH)
José Simões (CIDEHUS, Univ. Évora)
Luís Machado (CESEM-NOVA FCSH)
Maria Amélia Campos (CHSC, Univ. Coimbra)
Maria Irene Aparício (IFILNOVA, NOVA FCSH)
Maria João Melo (LAQV/REQUIMTE, NOVA FCT)
Nuno Ivo (IEM, NOVA FCSH)
Paula Nabais (LAQV/REQUIMTE, NOVA FCT)
Paulo Pereira (Univ. Aveiro)
Pedro Martins (IHC, NOVA FCSH/IN2PAS)
Susana Viegas (IFILNOVA, NOVA FCSH)
Tomás Cordero Ruiz (IEM, NOVA FCSH)
Taíssa Poliakova Cunha (CESEM, Univ. Évora)
Svetlana Poliakova (CESEM, NOVA FCSH)
IHC – Instituto de História Contemporânea – NOVA FCSH (UIDB/04209/2020)
IFILNOVA – Instituto de Filosofia – NOVA FCSH (UIDB/00183/2020)
CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – NOVA FCSH (UIDB/00693/2020)
IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – NOVA FCSH (UIDB/00657/2020)
CIDEHUS – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades – Universidade de Évora (UIDB/00057/2020)
LAQV / REQUIMTE – Laboratório Associado para a Química Verde – NOVA FCT