Ana Mira e Susana Ventura
A noção de “undercommons” é elaborada, por Stefano Harney e Fred Moten (2013), como o espaço e o tempo que se encontra sempre aqui, na realidade e na fantasia, e onde fazemos parte do movimento das coisas — We’re already here, moving. We’ve been around. Para co-habitar no espaço dos “undercommons”, já não como espaço abandonado, é preciso considerarmos que aquilo que está partido permanecerá partido e não pode ser reparado. Estendermo-nos, assim, em direcção ao outro e ao lugar com o intuito de procurar uma conexão, cultivando o incluído e o excluído no espaço e no tempo dos regimes de vigilância. Então, com aquele espaço e tempo vigilante, mas na recusa da sua normatividade, passam a coexistir movimentos de dissonância, ruído, trepidação, desorientação, fugitividade (fugitivity), hapticalidade, despossessão; os quais, por sua vez, podem ser moldados performativamente. Já para Deleuze, um “meio” é feito de “qualidades, substâncias, potências e acontecimentos”, um “trajecto” confunde a subjectividade do meio com a daquele que o percorre e um “mapa” (do trajecto) traça o percurso e o percorrido numa cartografia dinâmica. É na coalescência entre o real e o imaginário que propomos pensar sobre a enorme práxis de gestos precisos na experiência da cidade que as performances dos Early Works de Trisha Brown (1966-1979), The Geography Trilogy de Ralph Lemon (1997-2007) e Acções de Eleonora Fabião (2008-) revelam, por exemplo: esmagar discos de vinil e enterrá-los no quintal, construir uma nave espacial com materiais reciclados, caminhar na fachada de um prédio, descer uma rua de mãos dadas em desequilíbrio, ou fazer um arco-íris de luzes resplandecer no meio da noite.
Ao convocar as noções de “undercommons” (Stefano Harney e Fred Moten, 2013) e as de “meio”, “trajecto” e “mapa” (Gilles Deleuze, 2000), em articulação com as performances referidas, procuramos pensar sobre a emergência de “geografias sensíveis” capazes de reinventar a experiência da cidade, suas vivências e imagens.
Dir-se-á que a cidade é um dos territórios preferenciais para a actuação de arquitectos e de urbanistas pelo seu modelo complexo, reflectindo, por sua vez, as “ligações nervosas” dos seus habitantes (Simmel) e os problemas que a vida, na plena abertura ao desconhecido, vai revelando no devir-futuro do presente inconstante e indefinido, não obstante as constantes forças de normalização. Hoje, a cidade enfrenta o paradoxo que nos descreve Massimo Cacciari: o espaço indefinido e homogéneo da cidade-território ou da pós-metrópole não é tolerante à construção de lugares de habitar, contradizendo a própria condição física dos corpos que são, ainda e não obstante, lugares.
Na viragem do século, Ignasi de Solà-Morales, num ensaio intitulado “Terrain Vague”, detectava nos espaços vazios e informes, resultantes do crescimento das grandes cidades após a Segunda Grande guerra, a condição correlata do sujeito pós-metropolitano, enquanto no filme homónimo de Marcel Carné (de 1960), encontramos uma forma de apropriação desses espaços através da prática da deriva situacionista seguindo as linhas de fuga que atravessavam a cidade de Paris (à época). A linha de fuga, como conceito deleuziano, é um vector de desterritorialização que desenha uma fuga da ordem, da norma e dos estratos, ou uma linha feiticeira capaz de transformar as forças invisíveis em criação pura, ou, por outro lado, em caos e morte. Os vazios informais possuem este carácter paradoxal que identificamos como a génese do paradoxo referido por Cacciari, quando parece ser exigida aos corpos uma mesma transformação física. E, contudo, existirá uma outra linha de fuga, desenhada pela resistência dos corpos e pela criação de lugares que apelidamos de paisagens poéticas a partir de algumas ideias de Gilles Deleuze e de Peter Zumthor.
Partindo da leitura crítica de excertos dos textos de Cacciari, Solà-Morales, Deleuze e Zumthor, propomos pensar sobre a emergência de uma paisagem poética na cidade-território ou espaço pós-metropolitano, que seja capaz de transformar os seus vazios informes em lugares a partir das linhas de fuga que os atravessam, tomando como referência principal o projecto da High Line, em Nova Iorque, e as fotografias desta de Joel Sternfeld.
IMAGEM:
Ação Fortalezense #5: jarros, Eleonora Fabião
Bienal Internacional de Dança do Ceará de Par em Par, Fortaleza 2010
Dois jarros – um de barro, outro de prata; um cheio d’água, outro vazio. Com os pés descalços, mover a água de um para o outro até seu desaparecimento completo. Caso passantes se aproximem, oferecer os jarros para que realizem a ação também. Ou, oferecer um dos jarros para que a realizemos juntos.
© Victor Furtado