CineLab
Projeto de Investigação
PhilDoc – Filosofia e Cinema Documental. Mediar o Real

Os filmes documentais convocam o pensamento filosófico de uma maneira particularmente desafiante. Por um lado, colocam o problema do real de forma enfática, ao abordarem a realidade diretamente e tomarem em relação a ela uma “posição assertiva” (Plantinga em LaRocca, 2015). Por outro lado, incitam-nos a pensar nas múltiplas mediações através das quais alguma coisa aparece como real, pertinente, autêntica ou verdadeira, conduzindo-nos, assim, a problematizar as correlações de formas e conceitos através das quais esses atributos adquirem a sua evidência irrecusável. Com efeito, os documentários veiculam, dada a sua pretensão inerente à verdade, ideias implícitas sobre a própria estrutura da realidade, a relação entre o que aparece à superfície e camadas mais profundas da sociedade, e a relação entre experiências subjetivas e o seu significado social. Além disso, realizam uma reflexão epistemológica implícita sobre o conceito de objetividade e a sua relação com a exatidão factual. Combinam, portanto, uma reivindicação específica de veracidade com a intervenção artística do cineasta, cujas escolhas estéticas, temáticas e políticas determinam como a realidade em questão deve ser mediada. No entanto, muitos documentários populares ocultam esta tensão inerente, na qual inevitavelmente se sustentam, e pretendem fornecer um acesso imediato à realidade, recorrendo a discursos oficiais, formas convencionais e padrões estandardizados. Assim, não apenas corroboram ideias hegemónicas e os esquemas representacionais a elas associados, mas também moldam a perceção da realidade (Baumann, 2021). Longe de se contentarem em representar a realidade objetivamente, os formatos mainstream contribuem para a uniformização da sua aparência. Por outro lado, produções artísticas ou independentes, como os filmes de Farocki, Loznitsa, Akerman, Castaing-Taylor ou Sousa Dias, problematizam a manifestação previsível e de senso-comum da realidade pelos meios artísticos. Realizam, por conseguinte, uma crítica imanente e transformadora quer das perceções convencionais, quer da estrutura conceptual correspondente. Em vez de alegarem representar a realidade “como ela realmente é”, retiram-na da sua suposta obviedade, desviam o foco para perspetivas divergentes e esculpem um conteúdo de verdade que escapa à representação convencional.


Esta complexa situação do cinema documental, qual face dupla de Janus, a sua capacidade seja de corroborar, seja de perturbar a aparência da realidade como uma entidade coerente, é o ponto de partida do PhilDoc. A nossa hipótese de trabalho é que o potencial performativo dos documentários reside, em primeiro lugar, na sua configuração formal, na maneira como a forma não apenas medeia o conteúdo, mas também lhe confere um significado particular. Portanto, na senda da teoria estética de Adorno, consideramos a forma como “conteúdo sedimentado” (Adorno, 1997). Ao longo do projeto, empreenderemos uma crítica imanente de filmes específicos por meio de uma abordagem dialética, com o objetivo de extrair a inteligibilidade do sensível das configurações documentais. Concomitantemente, iremos trabalhar com um conceito filosófico de forma capaz de abordar quer as formas sociais, quer as constelações estéticas, por relação com a realidade que elas abordam. Esta ênfase na forma constitui a especificidade da nossa abordagem. Até hoje, a pesquisa filosófica sobre o cinema documental tem-se concentrado principalmente em considerações teóricas: a reivindicação de veracidade (Plantinga em LaRocca, 2015), a força probatória de certas características (Currie; Carroll, ambos em LaRocca, 2015) ou a delimitação do género (Nichols 1991; Renov 1993). Os teóricos e críticos de cinema, por sua vez, debruçam-se principalmente sobre os aspetos políticos, éticos e estéticos dos documentários, sem desdobrarem em profundidade os conceitos filosóficos que veiculam. PhilDoc, por contraste, enfatizará a questão da mediação e o potencial crítico da forma, abordando assim o documentário simultaneamente como um problema filosófico, uma forma de arte e um meio social e politicamente relevante.

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